
No dia 30 de julho de 2025, Evelyn e Eliseu deram a partida no Ioniq híbrido, comprado especialmente para a viagem, e deixaram a chácara onde vivem, em Morretes, no Paraná. A expectativa é que retornem um ano depois, com histórias, experiências e uma visão de mundo completamente diferente. Não há como voltar da mesma forma depois de tudo o que estão descobrindo juntos.
A princípio, o destino era o nordeste do Brasil. “Nosso objetivo era percorrer o interior do Brasil até Belém (PA) e voltar pelo litoral. Estabelecemos alguns pontos prioritários que definiram a rota: Brasília, Jalapão, Chapada das Mesas, Alter do Chão, Belém e as capitais nordestinas. Mas o roteiro é flexível e sempre podemos inserir novos destinos, alguns deles sugeridos por pessoas que vamos encontrando pelo caminho”, explica a professora de matemática aposentada, Evelyn Rosana Cardoso, 52, mestre e doutora em Educação para a Ciência e a Matemática.
Há dez anos ela conheceu Eliseu da Silva Serafim, 57, licenciado em educação física e pedagogia. Os dois davam aulas para os anos finais do ensino fundamental e médio na rede estadual do Paraná. Por um tempo, moraram em Maringá. Eliseu se aposentou em 2024 e Evelyn, em 2025.
PLANEJAMENTO: QUEM VAI CUIDAR DA FRIDA?
Dirigir e viajar é um hobby do casal, que sempre fez pequenas viagens nas férias e nos feriadões, buscando paisagens naturais e históricas, além de botequinhos descolados. Mas o tempo curto não permitia explorar lugares mais distantes. Com a aproximação da aposentadoria, começaram a pensar em uma viagem mais longa. “A logística da viagem e a organização da nossa casa durante nossa ausência foram planejadas no primeiro semestre de 2025”, disse Evelyn.
A principal dificuldade foi conseguir alguém para ficar na casa deles cuidando da Frida, a charmosa gata do casal. “No início de julho o Eliseu conseguiu convencer a irmã dele, Beth, a se mudar de São Paulo para ficar na chácara, na área rural de Morretes. Ela morava de aluguel no centro da capital paulista e gostava do movimento. “Morar em Morretes, no meio do mato, está sendo difícil para ela, mas tem a vantagem de não gastar com aluguel”, contam.

Os dois também precisaram encontrar uma pessoa para administrar os imóveis e nomearam um advogado para representá-los judicialmente, caso necessário. “Para essas duas situações conseguimos encontrar amigos”, disse ela. Uma pergunta que as pessoas fazem ao casal é se eles têm filhos. Eliseu tem uma filha de 33 anos e Evelyn, uma de 29. Independentes, elas apoiaram a iniciativa dos pais.
A escolha do veículo também foi demorada porque os carros com todos os itens que desejavam não cabiam no orçamento. Eles optaram por um carro híbrido, que não é 4×4. “Nesses primeiros 70 dias, o mais desafiador foi percorrer algumas estradas com um veículo 4×2 e muito baixo”, comentou Eliseu.
E o veículo apresentou algum defeito até agora? O único problema é que em São Luís (MA) acabou a bateria da chave. Por sorte, eles estavam a 5 quilômetros de uma concessionária da marca. Trocaram a pilha, configuraram a chave e seguiram viagem. O carro chega a fazer 24 km/litro, mas definitivamente, não é indicado para estradas de terra por ser muito baixo.
O QUE PENSAM
O casal valoriza o hoje. “Somos professores aposentados, não vamos ficar ricos. Não temos grandes pretensões. O momento é agora”, disse Evelyn, que não vê sentido em permanecer trabalhando depois de ter cumprido sua jornada por tantos anos.
Ela é uma pessoa prática e afirmou, no 62º dia da aventura, que poderia ter levado metade das roupas que colocou na mala. Toda semana eles passam num ‘lava e seca’ para deixar as roupas em ordem. Quando não encontram um, negociam com as pousadas ou hotéis para utilizarem as máquinas. Naquele dia, uma segunda-feira, eles estavam no Circuito Betânia, em Santo Amaro, nos Lençóis Maranhenses. Evelyn não perdia uma oportunidade de mergulhar nas lagoas e rios, sempre admirando as paisagens.
Eliseu compartilha o mesmo pensamento da companheira. Agnóstico, ele conta que tem medo de avião – inclusive sente palpitações -, mas dá risada ao lembrar que nunca rezou para tantos santos ao encarar uma decolagem!
Assim como Evelyn, o professor é muito sociável e lembra de quando se mudou para Curitiba e tentou se enturmar por meio do esporte, sua praia. “Eu adoro futebol e vi um grupo jogando num campo. Me aproximei, fiquei observando, e contei para ver quantos jogadores tinha. Era número ímpar. Perguntei a um deles se eu poderia jogar junto, e a resposta foi um sonoro ‘não’”, conta.
BRASIL ACOLHEDOR
Essas manifestações de cultura local são a cereja do bolo da viagem atual. Eles contam que têm encontrado pessoas interessantes, receptivas e que gostam de interagir, tanto moradores como turistas. “Num trajeto próximo de São Raimundo Nonato (PI), paramos o carro para fotografar um bode na janela, mas o bode saiu antes do registro. Logo em seguida a dona da casa saiu na porta, ficamos constrangidos por estarmos na porta e explicamos o motivo. Ela nos convidou para entrar e tomar café”, relembram.
Em Soure, na Ilha do Marajó (PA), encontraram o senhor Janary na rua. “Começamos a conversar e poucos minutos depois ele nos ofereceu uma moto para realizarmos os passeios na ilha. Aceitamos”, disse Evelyn.
Em Raposa (MA), ficaram hospedados numa pousada que não oferecia café da manhã. “Saímos na rua para saber onde poderíamos tomar café no dia seguinte, antes do passeio de barco. Pedimos informação para uma moradora e ela respondeu que era só ir à casa dela de manhã”, conta Eliseu.

“Em Taguatinga (TO) fomos a uma residência pedir informações sobre as Cavalhadas, que estavam acontecendo na cidade. E acabamos ficando na varanda da casa com os moradores e os amigos deles, conversando sobre o festejo e os pontos turísticos do município”, disseram.
Num domingo de manhã, o casal passou pelo Quilombo Povos do Aproaga, em São Domingos do Capim (PA), e pediu informações sobre o quilombo para alguns moradores. Eles sugeriram que fossem até a casa de uma moradora, que é professora. “Fomos muito bem recebidos e ficamos algumas horas ouvindo uma aula sobre a história do quilombo”, lembra Evelyn.
Em 40 do Mocoóca, uma vila do município de Maracanã (PA), eles pararam numa escola para pedir informação sobre pousadas para uma funcionária. “Ela nos convidou pra ficarmos hospedados na casa dela.”
CUSTOS
Muita gente pensa que uma viagem longa como essa é financeiramente inviável. “É barato viajar pelo interior do Brasil”, diz Evelyn, ao mostrar fotos do cardápio de um restaurante no Ceará com espetinho tradicional acompanhado de baião por R$ 11; creme de galinha com arroz, batata palha e paçoca de carne de sol por R$ 12; qualquer espetinho entre R$ 6 e R$ 8. E até sobremesa, como mousse de morango ou maracujá, por R$ 5. Se preferir um pudim, R$ 6. O segredo é procurar estabelecimentos que a população local frequenta. Vinhos eles costumam comprar e levar no carro para tomar junto com uma pizza, caso optem pelo delivery na hospedagem.
“Selecionamos as hospedagens e restaurantes de acordo com o nosso orçamento e que sejam receptivos à diversidade. Quando percebemos qualquer sinal de preconceito e intolerância, não entramos”, afirma a viajante.
Para a hospedagem, eles fazem busca na internet e aplicam os filtros: estacionamento, ar condicionado e banheiro privativo. “Nos hospedamos em hotéis, pousadas, hostels e motéis”, diz Eliseu.
Eles contam que encontraram hospedagem e restaurantes com preços bem abaixo dos praticados no sul do país. Geralmente gastam menos de R$ 200 por dia com hospedagem e uma média de R$ 30 por refeição. “A média diária de gastos é de R$ 600, incluindo hospedagem, alimentação, combustível e passeios”, aponta ele. Também se dizem satisfeitos por não pagarem pedágios, que nas rodovias do sul e sudeste são muito comuns.
Eles percorrem, em média, 150 quilômetros por dia, se revezam na direção e geralmente param antes das 19h. Só dormiram uma noite no carro porque calcularam mal a hora do pouso e não aguentavam mais de cansaço. Mesmo assim, procuraram um posto de combustíveis com bastante movimento de caminhoneiros, por segurança.
LUGARES E SITUAÇÕES ESPECIAIS

Eliseu e Evelyn não estabelecem limite de tempo em cada lugar. Às vezes planejam passar horas num local e acabam ficando dias! “A ideia é aproveitar ao máximo as experiências em cada cidade. Quando paramos, sempre pesquisamos os atrativos do lugar e das cidades vizinhas, lembrando que nos interessam os atrativos naturais, históricos e culturais”, afirmou ela. O casal sabe que a inserção de novos destinos pode atrasar o roteiro. “Se isso acontecer, podemos planejar outra viagem”, dizem.
Uma das surpresas foi o município de Guaribas (PI). Evelyn comentou com um guia turístico que pretendia conhecer a cidade, e ele estranhou: “mas lá não tem nada!”. A viajante retrucou na hora: “O que é nada para você? Tem gente morando lá?”, quis saber. Ele respondeu que sim. “Então lá tem coisa interessante sim.” E foram.
Sem nenhum atrativo turístico relevante, Guaribas atraiu pelas pessoas. “Fomos para a cidade apenas para interagir com a população local. Foi uma experiência muito agradável, fomos muito bem recebidos”, disse ela. Durante a visita, acabaram descobrindo que o programa Fome Zero foi lançado ali em 3 de fevereiro de 2003. “Eu tinha que saber dos impactos disso e conhecer a história”, afirmou.
A interação com as pessoas (moradores e turistas) tem sido a parte mais legal da viagem, segundo eles, além das paisagens belíssimas e comidas deliciosas. “Em São Luís, estávamos numa praça assistindo a uma apresentação de Tambor de Criola, e começamos a conversar com uma mulher que estava ao lado, moradora do Rio de Janeiro. Descobrimos que ela era amiga de um amigo próximo do Eliseu. Sem ter combinado nada, voltamos a reencontrá-la no dia seguinte em dois locais diferentes”, conta Evelyn.
Um casal de amigos deles esteve em Barreirinhas (MA) e recebeu a recomendação de procurar o “Ceará”. “Como não conseguiram, repassaram a orientação pra nós, pois iríamos para a cidade na semana seguinte. Logo que chegamos em Barreirinhas começamos a perguntar por ele, conseguimos o número de telefone e marcamos um encontro. Ele morou em Curitiba por muito tempo, onde tinha um grupo de forró, antes de se mudar para o Maranhão”, contou Eliseu.
Na Serra da Capivara (PI), ouviram dos moradores do entorno do parque os relatos sobre a arqueóloga Niède Guidon. “Já sabíamos da importância do trabalho dela como pesquisadora, mas não tínhamos noção do ser humano extraordinário que ela foi, como ela viveu para o Parque e a importância para a ressignificação econômica das cidades vizinhas. Saímos bem emocionados”, disse Evelyn.
Outra visita que mexeu muito com os dois viajantes foi na casa de chocolate “Filha do Combu”, em Belém, onde conheceram a história da proprietária, Dona Nena. “Foi muito interessante ver como uma mulher, tomando como base apenas a sua história e seus conhecimentos, transformou a realidade da ilha, produzindo e comercializando chocolates artesanais de qualidade, com responsabilidade ambiental.”
CURIOSIDADES
Histórias hilárias e outras nem tanto surgem todos os dias em uma viagem como essa. Na Cachoeira do Arrojado, em Cristalina (GO), o casal encontrou um grupo acampado em uma Parati verde antiga. Sim, uma Parati, aquele carro lançado pela Volkswagen em 1982 para substituir a Variant II e que deixou de ser fabricado em 2012.
Entre Maracanã (PA) e Bragança (PA), eles presenciaram uma experiência maravilhosa. Estavam em uma estrada e viram uma moto parada no acostamento com duas mulheres pedindo para que parassem. “Ao sinal de perigo, imaginamos que fosse um bebê atropelado entre as duas pistas. Ligamos o pisca-alerta e compreendemos a situação: era uma preguiça que se arrastava no asfalto, tentando chegar ao outro lado da via”, conta Eliseu. Os demais motoristas, nos dois sentidos, também pararam e, de alguma maneira, colaboraram para salvar o bichinho. Um motociclista com luvas levou a preguiça da metade da pista até um arbusto, no acostamento. “São atitudes como essa que nos fazem ter um pouco de esperança na humanidade”, afirma Evelyn.
NEM TUDO É LINDO
Experiências chatas também fazem parte do roteiro. Sempre que chegam numa cidade, Eliseu e Evelyn procuram a secretaria de turismo. “Já passamos em mais de 20 secretarias e, infelizmente, a situação é a mesma em todos os locais: a pessoa que responde pela pasta nunca está. Os atendentes, no mínimo dois, às vezes dividindo a mesma escrivaninha, sempre dizem que o secretário ainda não chegou e não sabem o horário que vai chegar ou que está fora da cidade. Dizem ainda que só o secretário poderia nos dar alguma informação sobre os atrativos turísticos da cidade”, contam.
Segundo eles, os museus municipais, na maioria dos casos, estão fechados no horário informado pelo Google que estariam abertos. Quando perguntam nos comércios próximos, as pessoas respondem que “de vez em quando abre”. “Ou seja, o turismo e a cultura em municípios médios e pequenos são apenas cabides de emprego, só funcionam nas capitais”, avalia Evelyn.
Em Viseu (PA), eles foram à Secretaria de Turismo para ver o mapa das comunidades quilombolas do município. “O secretário não estava, os dois atendentes informaram que só o secretário tinha acesso a esse mapa, só ele poderia nos mostrar, mas não sabiam quando ele iria aparecer na secretaria.”
A única exceção, de acordo com ela, foi em Coronel José Dias (PI). O secretário também não estava no local, mas a atendente soube informar sobre os pontos turísticos e tinha uma lista com os telefones dos guias da região.
Outra situação triste vivenciada pelo casal está relacionada ao lixo nas rodovias, cidades e praias. “Infelizmente, o descarte correto do lixo ainda não é uma preocupação da maioria dos moradores e turistas”, concluíram.
Se você leitor, chegou até aqui, é sinal de que experiências de vida e aventuras te interessam. Quem sabe a Beth, irmã do Eliseu, topa contar como foi esse ano cuidando da Frida numa chácara distante, numa área rural do Paraná…