Aos devotos de São Jorge Aos devotos de São Jorge Aos devotos de São Jorge Aos devotos de São Jorge
Aos devotos de São Jorge

Por ocasião da novela “Salve Jorge” escrevi um ensaio sobre  o significado do humano profundo que esta figura de Santo com o dragão representa, com o título:São Jorge e o Dragão: expressão do paradoxo humano. Reproduzo aqui o artigo em homenagem a tantos devotos de São Jorge que bem poderia ser o segundo patrono do Rio de Janeiro, junto com São Sebastião. Junto agrego uma bela figura encontrada no twitter de uma querida amiga, guerreira da democracia e na defesa da liberdade para Lula, Maisa Commans.

Toda religião, também o cristianismo, possui muitas valências. Além de se centralizar em Deus, elabora narrativas sobre o drama paradoxal do ser humano, gerando sentido, uma interpretação da realidade, da história e do mundo.

Exemplar é a lenda de São Jorge e o combate feroz com o dragão. Primeiramente, o dragão é dragão, portanto, uma serpente. Mas é apresentada alada, com enorme boca que emite fogo e fumaça e um cheiro mortífero. No Ocidente representa o mal e o mundo ameaçador das sombras. No Oriente é um símbolo positivo, símbolo nacional da China, senhor das águas e da fertilidade (long).

Entre os aztecas era a serpente alada (Quezalcoatl), símbolo positivo de  sua cultura. Para nós ocidentais o dragão é sempre terrível e representa a ameaça à vida ou as dificuldades duras da sobrevivência. Os pobres dizem: “tenho que matar um dragão por dia, tal é a luta dificultosa para levar a vida avante”.

Mas o dragão, como o mostrou a tradição psicanalítica junguiana com Erich Neumann, James Hillmann. Etienne Perrot e outros representa um dos arquétipos (elementos estruturais do inconsciente coletivo ou imagens primordiais que estruram a psique) mais ancestrais e transculturais da humanidade. Junto com o dragão sempre vem o cavaleiro heróico que com ele se confronta numa luta feroz. Que significam essas duas figuras? À mão de categorias de C. G. Jung e discípulos, especialmente de Erich Neumann que estudou especificamente este arquétipo (A  história da origem da consciência, Cultrix 1990) e da psicoterapia existencial-humanística de Kirk J. Schneider (O eu paradoxal, Vozes 1993) procuremos entender o que está em jogo nesse confronto. Ele ensina e nos desafia.

O caminho da evolução leva a humanidade do insconsciente para o consciente, da fusão cósmica com o Todo para a emergência da autonomia do ego. Essa passagem é dramática e nunca é totalmente realizada; por isso, cada um deve continuamente retomá-la caso queira gozar de liberdade e de autonomia. Mas importa reconhecer que o dragão amedrontador e o cavaleiro heroico são duas dimensões do humano. O dragão em nós é o nosso universo ancestral, obscuro, nossas sombras de onde imergimos para a luz da razão e da independência.

Não sem razão que em algumas iconografias, especialmente uma da Catalunha (é seu patrono) o dragão aparece envolvendo todo o corpo do cavaleiro. Numa gravura de Rogério Fernandes (com.br) o dragão aparece envolvendo o corpo de S. Jorge, que o segura pelo braço e tendo rosto, nada ameaçador na altura do de São Jorge. É um dragão humanizado formando uma unidade com São Jorge. Noutras (no Google há 25 páginas de gravuras de São Jorge com o dragão). Noutras aparece o dragão como um animal domesticado sobre o qual São Jorge de pé o conduz sereno.

A atividade do herói, no caso de São Jorge, na sua luta com o dragão mostra a força do ego, corajoso, iluminado e que se firma e conquista autonomia, mas sempre em tensão com a dimensão escura do dragão. Eles convivem mas o dragão não consegue dominar o ego. Diz Neumann:”A atividade da consciência é heroica quando o ego assume e realiza por si mesmo a luta arquetípica com o dragão do inconsciente, levando-a a uma síntese bem sucedida”(Op.cit. p.244), A pessoa que fez esta travessia não renega o dragão, mas o mantem domesticado.     Por esta razão, na maioria das narrativas, São Jorge não mata o dragão. Apenas o domestica e o reinsere no seu lugar deixando de ser ameaçador. Ai surge a síntese feliz dos opostos; o eu paradoxal encontrou seu equilíbrio pois alcançou a harmonização do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra,  da razão com a paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte e com a religião (Cf. Schneider, p. 138).

A confrontação com as oposições e busca da justa medida constitui a característica de personalidades amadurecidas, que integraram a dimensão de sombra e de luz. Assim o vemos em Buda, Francisco de Assis, Jesus e em Luther King. Este último se opunha à resignação paralisante de negros  e também contra a amargura e o ódio que acabavam na violência. Dizia King: “não precisamos imitar a resignação, nem o ódio porque existe um caminho melhor e mais eficaz: o amor e o protesto não-violento” (Letter from Birmingham jail, 1969).

Talvez aqueles que veneram São Jorge diante do dragão não saibam nada disso. Não importa. Seu inconsciente sabe; ele  ativa e realiza neles sua obra: a vontade de lutar, de se afirmar como pessoas autônomas que enfrenta e integra as dificuldades (os dragões) dentro de um projeto positivo de vida (São Jorge com seu cavalo branco). E saem fortalecidos.