Morreu sem patas, sem nome e sem justiça

Marília - A história real de um cavalo de trabalho mutilado, abandonado e esquecido — e do que ela revela sobre nós.

Era apenas um cavalo de trabalho. Sem pedigree, sem porte vistoso, sem altivez de exposições. Um animal comum, de pelagem sem brilho, habituado à lida do campo, ao peso da carroça, ao estalo do arreio. Nunca soube o que era descanso em pasto verde ou sombra de árvores largas. Sua vida sempre foi tração, esforço, obediência. Mas ainda assim — e talvez por isso mesmo — havia nele uma dignidade silenciosa, daquelas que não se exibe, mas resiste.

Foi esse cavalo, humilde em tudo, que um homem cruel decidiu destruir. Não com um tiro, que ao menos seria rápido. Não com um abandono discreto. Mas com um gesto de perversidade fria: amputou-lhe as quatro patas. E o deixou ali, no chão duro, sem qualquer chance de fuga, de defesa, de vida. Cortou-lhe as pernas como se cortasse cordas velhas.

Naquela imobilidade forçada, o cavalo não relinchava. Nem se debatia. Apenas respirava com dificuldade, os olhos ainda abertos, como quem não compreende o castigo. Ele não era feito para ser veloz, mas para caminhar. Para puxar. Para servir. E agora não podia nem se mover. Tiraram-lhe o único sentido da existência: o trabalho, o passo lento, o ir e vir das estradas de terra.

Pena não foi a morte, foi o que veio antes

É curioso — e doloroso — pensar como os cavalos estiveram ao nosso lado ao longo da história. Conduziram arados, carroças, guerras e jornadas. Aliás, foram companheiros da civilização muito antes dos motores e das máquinas. Carregaram reis, soldados, lavradores, crianças. Sempre em silêncio. Sempre sem escolha.

Mas aquele cavalo — aquele ali, no chão — não teve direito sequer a um fim digno. Assim, morreu como viveu: em silêncio, sem protesto.

Porém, com algo a mais: a injustiça de ter sido impedido de ser o que era. Sua pena não foi a morte. Foi o que veio antes dela. Foi a amputação do sentido. A prisão definitiva. A impossibilidade de andar. De seguir. De ser cavalo.

Há crimes que não ferem apenas o corpo. Ferem o símbolo. Ferem a memória. Aquele animal não era importante para ninguém, não estampava cartazes, não tinha nome em registro.

Dor por todos os descartados

Mas sua dor grita por todos os que são descartados quando já não servem. Por todos os que, depois de uma vida inteira de esforço, são recompensados com o abandono ou a violência.

Ele não morreu apenas de dor. Morreu de imobilidade. De tristeza. De solidão.

E no fim, morreu como muitos morrem neste mundo: calado, esquecido, sem justiça. Mas também como poucos: com uma última lição.

Às vezes, o que nos falta como humanidade está exatamente na forma como tratamos aqueles que não têm voz.