
A professora e pesquisadora em ciências sociais Célia Tolentino, de Marília, e o marido, o músico Luca Bernar, que vivem juntos na Itália há três anos, apontam uma situação “muito difícil”, agravada pela demora em entender a necessidade das medidas de prevenção, com enfrentamento à epidemia do coronavírus no país.
Célia Toletino vive uma pequena cidade de 30 mil habitantes na região da Veneza, a aproximadamente 250km da região com o maior foco da doença, e oferece informações que podem ajudar a entender a epidemia, o controle, as falsas informações e interpretações da epidemia e da reação à doença.
Cidade vazia em quarentena na Itália em foto feita pela pesquisadora Célia Tolentino
As informações podem ser resumidas em alguns pontos: a doença é mais grave para idosos, mas tem pacientes graves em todas as idades; a população pode e deve colaborar fugindo de aglomerações, cooperando e entendendo a necessidade de ficar em casa; as medidas oficiais de prevenção devem chegar antes da epidemia ser instalada.
E tudo isso tratando de um país com o que ela chama de sistema de saúde muito equilibrado, completamente gratuita. O atendimento funciona com medicina de base, antes de o paciente ir ao hospital, com acesso a médico generalista que atende qualquer manifestação de saúde e encaminha.
“A única coisa que a gente tem a dizer aos brasileiros é prevenção. Não subestime porque não é uma simples gripe. Alguns vão diretamente para situações de UTI. Médicos, saúde foi à tv pedir que a população fique em casa. Só quando a gente viu rosto marcado por mascaras, roupas como astronautas, exaustas, pessoas irem à TV dizer ‘não estamos aguentando‘ foi que a população se conscientizou de fato que deveria manter completa distancia, não ficar em público, não ficar em lotação.”
Ela conta que a progressão de gripe para um quadro de pneumonia é rápida para as pessoas de imunidade mais baixa e idosos. “Muita gente com sintomas e sendo atendidas em casa pelos médicos de base, porque não tem mais vagas hospitalares. Fala-se em subnotificação. E mesmo assim, os números são estarrecedores. 290 mortos pelo Covid19 em um só dia.”
Destaca o baque econômico também. “A quarentena parou tudo o que pode. A bolsa despencou. Muita gente está emocionalmente frágil porque teme perder emprego, fechar os seus pequenos comércios. Hoje é salvar a vida… Mas tem o amanhã..”
Veja abaixo informações enviadas pela professora ao Giro Marília
– Se for como gripes sazonais, a medicina de base cuida no consultório. Provavelmente vírus estava aqui há algum tempo e todo mundo tratando como influenza, a gripe sazonal. Em certo ponto começaram a notar pneumonias gravíssimas, sobretudo mais idosos, mas também em pacientes mais novos. Aí começaram a associar ao coronavírus.
Blitz de acompanhamento na Itália – Reprodução/internet
– Quando apareceu o primeiro surgiram outros em uma progressão aritmética espantosa. Quando as pessoas se dão conta, aquela ideia do paciente zero já foi, já circula em outros focos, já aparece em mais cidades e assim foi, uma progressão muito rápida
– Não é só população idosa. Essa está na linha de fogo direta, população corre risco. Mas sintomas com gravidade pegam todo mundo, na faixa dos 30, 40, 50 anos. Evolui todo mundo para uma pneumonia dupla.
– Alguns jovens fazem sintomas da gripe normal e passa. Mas essa mesma pessoa pode transmitir para outra pessoa que para na UTI.
Idoso caminha com máscara; casos em diversas idades – Reprodução/Redes sociais
– O que dizem é que não dá para definir esse quadro, que não só as pessoas idosas, não é isso o que a gente está vendo. Uma progressão pouca explicada, pouco conhecida, muita, muita gente indo para a UTI.
-E é isso que entra em colapso: não existe UTI assim como não existe pessoal para ficar 24h monitorando todo mundo, chegando na saturação, particularmente na zona de Milão, nas regiões mais populosas
– No resto do país as pessoas estavam mais tranquilas. É uma região como São Paulo, que traz muitas pessoas das outras regiões. E na medida em que foram voltando foram levando para lugares de origem, inclusive zonas com muito menos recursos médicos.
– Estamos na segunda semana de quarentena, tudo efetivamente parado. Tivemos duas semanas no titubeio até entrar na zona vermelho. Agora é tudo proibido, não é recomendável sair, aqui na cidade se pode sair, cidade pequena, fluxo lento, mas é sair um pouco e voltar, nada de ajuntamento de pessoas. Nos grandes centros é proibido ir ao mercado, o mercado vai levar e tem lista de espera.
– A sensação é de medo e insegurança. A gente não sabe. Não é como pernilongo que você enxerga, não é coisa que se possa usar repelente. Não desconsidero esses quadros de doença no Brasil ligado aos mosquitos, são gravíssimos, o que estou dizendo é que é uma ameaça invisível e essa invisibilidade gera uma insegurança, uma incapacidade de reagir.
– Temos feito na cidade e espaço em família e amigos manter normas de higiene, trocar roupa quando chega, tomar banho, fazer circular ar, evitar a presença do vírus em espaço fechado.
– Não temos família ou amigos contaminados. Cidade 30 mil habitantes, aberta, arejada, a gente circula a pé ou em bicicleta, carro, não tem ônibus urbano, não tem metro, não tem apinhamento.
– Aulas paralisadas em 20 de fevereiro, missas canceladas, eventos públicos cancelados, bares e restaurantes fechados. Aqui não tem grande incidência. Mas não é quadro das cidades maiores…todas vivem situação complicada.
Profissional de saúde mostra marcas e cansaço após 13 horas de trabalho na Itália – reprodução/Facebook
– Esse é o sentido da quarentena, uma ação coletiva, cívica, proteger a si e aos outros também. Acho que todo mundo aceitou que estávamos em uma situação bem complexa, que se a gente não ficasse aqui, chegaríamos a uma situação de caos. Não atinge muito do que se divulgou falso, de gente caída na rua, em casa. Não chegou mas é uma situação a que se pode chegar, de não ter aonde colocar os doentes.
– Não há situação grave de desabastecimento. O que não tem é álcool gel, nem mascara, nem luvas. Desapareceu mesmo das prateleiras. Houve tentativa de especulação mas não funcionou. Não temos notícia de desabastecimento. Em algumas cidades algumas coisas mais precárias com problema de entregas. Mas está garantida circulação de serviços essenciais como alimentos, material farmacêutico, tudo isso está garantido.
– Muito impressionante os motoristas com mascaras, luvas. Vimos uma entrevista em que um deles diz que é muito cansativo ficar com máscara de três camadas no rosto o dia todo mas faz isso também com senso cívico. Estamos vendo que muita gente faz sacrifício humano grande para superar esse momento.
Luca Bernar, marido da professora, toca ao lado da janela em mobilização cultural durante quarentena
– A melhor coisa que a população faz é ficar em casa. Dá uma certa angustia, não é fácil, A gente se sente impotente, sente temeroso, não sabe o que pode fazer, mas é a melhor coisa que a gente pode fazer.
– Tentamos produzir cultura, produzir coisas online com amigos. Esses dias um flashmob de música ao cair da tarde. Meu marido, o Luca Bernardi, músico, que Marília conhece bem, colocou piano próximo da janela, caixa de som, tocamos. Ao mesmo tempo ouvimos nosso vizinho tocar trombone, fizemos um diálogo sonoro. Participamos dessa manifestação de toda a Itália para tirar esse clima depressivo, esse silêncio que a gente chama aqui de estarrecedor.
– Nós, como pessoas que não estamos na linha de frente, nem na área de saúde, transportes, primeira linha, estamos tentando fazer nossa parte ficando em casa e produzindo conteúdos culturais para deixar o momento mais leve.