Colunista | Viviane Gonçalves

Lá pelas tantas você tripudiou em cima do ano de 2019.

Caçoou dele, enchia as redes sociais de memes, torcia pelo seu fim, que, segundo seu critério de ódio e vivência, foi o pior ano de sua vida.

Mal sabia que o tempo, as divindades, toda energia quântica, todos prótons, elétrons e até os neutrons, até ele que adora um muro, estavam rindo de sua insignificância e presunção de controle.

2020 chegou! Pulsante, pungente, forte e selvagem como um cavalo indomado.

Você pensou que lidaria bem com esse novo animal, daria trabalho no início, mas depois, ah vá, tiraria de letra.

Sairia cavalgando por paisagens novas, veria novos rostos, agregaria novas histórias, seria belíssimo o que viria.

Não contava com um vírus, um ser muito pequeno e acelular, um trenzinho de nada, nem enxerga. Não é como um cavalo bonito que desperta atenção.

É um vírus, um negócio aí que não  se sabe explicar muito bem.

Ele te fez reconfigurar todo o ano anterior.

Pedir desculpas por ter reclamado e até do memes bobos compartilhados.

2019 é como amante traído, não quer saber de desculpas, não volta atrás. Está achando que desculpas resolve tudo?

Ele não volta.

Daí começa um ano que trouxe um vírus e com ele histórias, infindas histórias, interrompidas. Como se alguém estivesse falando e a mudez o silenciasse no meio das palavras.

Trouxe prantos, inúmeras covas abertas, corações junto, fomos perdendo Marias, Clarices, Aldires, Flávios, Joões, Henriques, Patrícias. Fomos perdendo.

E chorando, e assustando, num eterno oh de assombro e tristeza com números, estatísticas, com pronunciamentos de descaso e desdém, passeios de jet ski substituindo churrascos.

Com " e daí?" constantes.

Já estávamos alarmados com tudo isso e 2020 trouxe cenas repetidas mas que sempre nos tiram o coração do peito para depois retorná-lo ao lugar de descanso.

Veio a morte do menino João Pedro Matos Pinto, nos trazendo à memória Marielle Franco, Evaldo Rosa dos Santos, Wesley, Wilton, Cleiton, Roberto, Carlos Eduardo (cinco jovens negros assassinados), Amarildo, Claudia (morta e arrastada pelo carro da PM).

Há tempos vivemos uma pandemia no Brasil que escolhe uma cor como alvo.

Já estava considerando que 2020 podia dar-se por encerrado.

Lá dos States a pandemia, não a nova, a antiga, escolheu mais um homem George Floyd.

Só que dessa vez não contavam com uma vacina que vem sendo utilizada há muito por quem vem sendo escravizado, estuprado, vendido, com Banzo dentro dos porões dos navios, chicoteado, mutilado: resistência mesclada a luta e revolta.

O mundo se mobilizando para dizer que vidas negras importam.

Parece óbvio, mas não é, precisamos ouvir.

Estávamos em  farrapos, olhos fundos, entregues a vontade de morrer por nos sentirmos incapazes de vivenciar tanta dor.

O noticiário traz a notícia, criança morre ao cair do 9° andar. A responsável pagou 20 mil de fiança e está solta.

Vinte mil . Miguel, 5 anos, filho de empregada doméstica, pobre, negro. Vinte mil.

Acabamos de entrar em junho de 2020, ainda restam 6 meses para que isso acabe, nos perguntamos, será que aguentaremos?

Já não sabemos o que pode nos matar primeiro, o Corona ou o mundo tal qual tem se mostrado.

Ao que parece, nada mudou, 400 anos de escravidão continua reverberando seus ecos mundialmente.

Foram lembrados alguns casos que ganharam notoriedade, mas sabemos que todos os dias homens, mulheres, crianças, tem sido assassinadas porque nasceram negras.

Essa pandemia se arrasta por séculos e não tem nos tornado melhores, pelo contrário, tem nos enfeitado como racistas cordiais.

Que ainda acreditam no Racismo reverso, na teoria da branquitude, na suposta superioridade ariana e contrários as cotas raciais.

Você achou que ganharia um cavalo? Ganhou um espelho e a imagem te envergonha, não é?

É, eu sei, também estou envergonhada.


Giro Marília -Viviane Gonçalves
Viviane Gonçalves
Cientista social formada pela Unesp-Marília, uma curiosa nos estudos que se referem às mulheres, adora literatura, filmes e poesias - que aprendeu a gostar com a mulher que via bordados no chão. Acredita que Adélia Prado tinha razão, mulher é mesmo desdobrável.

Matérias anteriores deste(a) colunista >