Colunista | Viviane Gonçalves

Nunca te passou pela cabeça a ideia de que morrerá e não terá lido todos os livros que quer, assistido todas as séries e filmes que fez uma listinha, visto obras de arte das quais só ouviu falar?

A frustração é grande só de imaginar como somos limitados até para fazer aquilo que é prazeroso e que nos traz ganho espiritual e intelectual.

Andando às rodas com minhas indagações e incômodos, lembrei-me de uma tirinha que vi quando era adolescente.

Um senhor sentado lendo um jornal e lá estava a lista das obras que cairiam no vestibular, ele ia citando cada uma delas, Macunaíma, Memórias Póstumas de Brás Cubas, A hora da Estrela, O encontro marcado...

Cada citação ele se repreendia por não ter lido nenhuma. No final da tirinha ele comenta “bem, pelo menos sei o que não li”.

Grosso modo, é melhor saber o que nos falta do que nem ter conhecimento que essas obras, autores, existem.

E, pasme, existem inúmeras pessoas, inclusive aqui no Brasil, no seu estado, no seu município, no seu bairro, seu vizinho, que não possuem o mínimo conhecimento sobre e como a arte pode nos salvar da loucura.

Algumas por preguiça e outras por faltar acesso mesmo. Porque a preocupação maior é comer, ter um lugar para dormir, não deixar faltar o alimento aos filhos.

Você acha mesmo que aquela mãe solo, com quatro filhos para criar, trabalhando de empregada doméstica ou ganhando fazendo uma faxina aqui e acolá, está preocupada se leu ou não Machado de Assis?

Ou se seus filhos lerão as obras exigidas nas melhores universidades do país?

Sou uma leitora voraz, sempre fui, mas a leitura se deu a mim por acaso, nunca vi minha mãe, semianalfabeta, lendo um livro.

A mulher não tinha tempo de cuidar de si e dos filhos, não tinha ideia, e ainda não tem, de quem são esses autores e para ela, pouco importa.

A leitura foi um acidente e deveras fiquei à mercê de autores e autoras que a maioria das pessoas desconhecem.

Embora de família muito pobre e seguindo a estatística, criada por uma mulher como chefe de família, tenho privilégios em reconhecer o que anda me faltando.

Sou uma mulher de 37 anos que, embora limitada economicamente em muitos aspectos, conheço o nome de vários autores que ainda quero ler, nome de obras, sei os filmes cult que preciso assistir, as séries.

Mas por que é tão importante o conhecimento e leitura desses escritores? Primeiro, como diria Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta, e posteriormente, para melhorarmos como pessoas e seres.

Os livros possuem uma capacidade extraordinária de nos possibilitar o encontro com o outro, entender outras possíveis realidades e se reconhecer humano, falível e cheio de complexidades.

A leitura ainda é um privilégio para poucos, mesmo aqueles que são alfabetizados, consta em pesquisa que 70% são analfabetos funcionais, ou seja, leem mas não conseguem interpretar o que estão lendo.

Mas por que num país onde uma grande parcela da população passa fome, não tem acesso a tratamento de esgoto, não tem acesso a saúde e educação, você está falando de livros e leitura de autores que estão muito longe da realidade?

Porque pessoas que leem não são enganadas facilmente, conhecem seus direitos, podem pleitear de igual para igual com qualquer pessoa e seu discurso é corroborado por suas palavras ganhando embasamento e força.

E porque, muitas vezes, por não saber fazer uma concordância o que a moça da faxina falou é totalmente desacreditado.

Acredito que vi na leitura a possibilidade da fuga de uma realidade que era assaz dura e o encantamento com o poder da palavra e do discurso.

Sou uma privilegiada por ter conhecimento de minha ignorância e por ter acesso a um mundo negado a muitas pessoas, tal qual o senhor da tirinha,  pelo menos eu sei o que não li.

A crítica, na verdade, não é para aqueles que possuem o acesso às obras e também autores, muito menos para quem foi negado o acesso.

E talvez nem seja crítica mas a constatação de que ainda somos tratados de forma muito desigual num mesmo território.

As pessoas que eu gostaria que lessem minhas crônicas, possivelmente, nunca lerão, a quem direciono meus textos e revolta nunca entenderão de fato algumas palavras utilizadas e o que estou querendo de fato dizer ao escrever.

Escrevo esse texto para projetar minha impotência e tristeza porque o que digo, muitas vezes, alimenta só o meu próprio ego, me tirando do passo que dou em direção à loucura.

Queria mesmo, ter a simplicidade para chegar até aquela mãe e seus quatro filhos e me fazer compreendida.

Enquanto não chego aos olhos e ouvidos de quem, de fato, é importante, sigo fazendo minhas listinhas intermináveis dos livros que não sei se lerei, dos filmes que tenho que assistir e das obras que preciso ver.

Sigo minha vida de mulher classe média que coloca como problema os livros que nunca leu enquanto a Cláudia se preocupa se vai ter arroz e feijão para os filhos no outro dia.

É... não adianta somente saber o nome dos livros que nunca li, e como disse Audre Lorde “ não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes da minha.”

E eu, com toda modéstia e respeito a Audre, complemento, nem feliz, mesmo se lesse todas as obras.


Giro Marília -Viviane Gonçalves
Viviane Gonçalves
Cientista social formada pela Unesp-Marília, uma curiosa nos estudos que se referem às mulheres, adora literatura, filmes e poesias - que aprendeu a gostar com a mulher que via bordados no chão. Acredita que Adélia Prado tinha razão, mulher é mesmo desdobrável.

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